Habitantes!

26 de janeiro de 2010

Lúcida na minha loucura

"Eu sou lúcida na minha loucura, permanente na minha inconstância, inquieta na minha comodidade. Pinto a realidade com alguns sonhos, e transformo alguns sonhos em cenas reais. Choro lágrimas de rir e quando choro pra valer não derramo uma lágrima.

Amo mais do que posso e, por medo, sempre menos do que sou capaz. Busco pelo prazer da paisagem e raramente pela alegre frustração da chegada. Quando me entrego, me atiro e quando recuo não volto mais. Mas não me leve a sério, sei que nada é definitivo. Nem eu sou o que penso que eu sou. Nem nós o que a gente pensa que tem.

Prefiro as noites porque me nutrem na insônia, embora os dias me iluminem quando nasce o sol. Trabalho sem salário e não entendo de economizar. Nem de energia. Esbanjo-me até quando não devo e, vezes sem conta, devo mais do que ganho. Não acredito em duendes, bruxas, fadas ou feitiços. Não vou à missa. Nem faço simpatias. Mas, rezo pra algum anjo de plantão e mascaro minha fé no deus do otimismo. Quando é impossível, debocho. Quando é permitido, duvido.

Não bebo porque só me aceito sóbria, fumo pra enganar a ansiedade e não aposto em jogo de cartas marcadas. Penso mais do que falo. E falo muito, nem sempre o que você quer saber. Eu sei. Gosto de cara lavada — exceto por um traço preto no olhar — pés descalços, nutro uma estranha paixão por camisetas velhas e sinto falta de uma tatuagem no lado esquerdo das costas.

Mas há uma mulher em algum lugar em mim que usa caros perfumes, sedas importadas e brilho no olhar, quando se traveste em sedução.

Se você perceber qualquer tipo de constrangimento, não repare, eu não tenho pudores mas, não raro, sofro de timidez. E note bem: não sou agressiva, mas defensiva. Impaciente onde você vê ousadia. Falta de coragem onde você pensa que é sensatez.

Mas mesmo assim, sempre pinta um momento qualquer em que eu esqueço todos os conselhos e sigo por caminhos escuros. Estranhos desertos. E, ignorando todas as regras, todas as armadilhas dessa vida urbana, dessa violência cotidiana, se você me assalta, eu reajo."

Clarice Lispector
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Lindas palavras. E que definições... Me identifico com algumas, anseio por tantas e quem me conhece melhor saberá discernir entre uma coisa e outra! Aliás, complicado esse negócio de ponto de vista, viu?!

3 comentários:

Blog de um Brasileiro disse...

Clarice é fogo. A mulher parece que veio programada para escrever sobre os sentimentos mais escondidos. Ela sim , que deveria ter sido indicada ao Nobel.
Cada texto dessa mulher tem uma força maravilhosa

Thaís Gomes disse...

Brasileiro, a gente custa a se definir....aí vem Clarice e diz tudo! rsrs

Maravilhosa, né?

Beiju

Elga Arantes disse...

Me identifico demais com esse texto dela, também.

Ela é perfeita! Às vezes, exagerada, afetada e, por isso, perfeita! Porque se não houvesse algo nela que eu não gostasse (pelo menos, hora sim, outra não) ela não seria gente, seria divina. E eu costumo duvidar das divindades; mesmo não querendo, às vezes.